fevereiro 01, 2010

Memórias da neve [29.01.2010 Covilhã]


Eu conheço estas ruas. O cheiro das casas é-me familiar, as árvores não me são estranhas e nem tão pouco o são os ramos que me envolvem os olhos. As pessoas são outra história: os passos delas, o respirar delas – são-me ainda mais estranhos do que eu. Ou não houvera eu sido em dias que não estes, filho do frio que desce as encostas desta montanha. Da janela da casa onde hoje mora apenas a minha memória assisto, mudo, a cada dia que passa, o sol a fugir-me das mãos – e tudo o que sobra é vontade de partir no encalço de luz.
Meu pai, que conhece tão bem o nascer do dia como eu o fim dele, diz que lhe falta o horizonte – diz que este aninhado no beiral da janela é um filho menor do contentamento. Também lhe faz falta a luz. E então partimos de mãos dadas por estradas mais transformadas do que me recordo – como há vinte anos atrás (talvez mais) numa época em que a neve era o azar dos seus filhos e privilégio meu.
Voltei à fonte das fotografias que vão ficando debaixo do pó da idade e regressei ao sorriso do meu irmão com os dedos envoltos em flocos de gelo.
Não há medida para a saudade nem tão pouco há medida para a nostalgia de não poder voltar – é apenas saudade de ignorância da rapidez com que num estalar de dedos nos tornamos memória.
Há mais do que um bom par de anos a minha mãe falava-me do estrangeiro de Camus e do isolamento a que também o conhecimento nos aprisiona.
E ao voltar aqui hoje, sabendo mais do que queria, sou um estrangeiro que partilha as minhas recordações. Mas sinto-me como regressado à minha outra casa de onde vou ter de partir antes sequer de ter tempo para mudar as cordas que me estalam dentro do peito.
No caderno negro que me acompanha mais que a respiração, tenho guardado entre poemas a seguinte frase “hoje abandono a montanha, amanhã o lobo espera-me”. A manhã seguinte tornou-me memória.
O lobo veio à montanha e viu que tudo era bom.
Nem vaidade nem vento que passa.
(deixa-me partir)
JoaoRui

Snow memoirs – I know these streets. The scent of the houses is familiar to me, the trees aren’t strangers to me and neither are the branches around me eyes. People are another story: their steps, their breathing – they are me even stranger to me than myself. Or had I not been in days not of today a son of the cold that comes down the slopes of this mountain. From the window of the house where now lives only my memory, silent, every passing day I watch the sun slipping out of my hands - and all that remains is the will to go on the trail of light. My father, who knows the rise of the day as well as I know the end of it says he lacks the horizon – he says that this one here, nested on the window ledge is a smaller child of contentment. He also misses the light. And then we fled, holding hands through roads that are even more transformed than I remembered - like twenty years ago (maybe more) back in a time when the snow was a chance of her children and my privilege. I went back to the fountain of the photographs that are sleeping beneath the dust of ages and returned to the smile of my brother with his fingers wrapped around flakes of ice. There is no measure for longing nor there is for the nostalgia of not being able to go back - it's just longing of the ignorance of how in quick snap of the fingers we become memory. More than a couple of years ago, my mother spoke to me of Camus’s “The foreigner” and of the isolation to which knowledge binds us. And to come back here today, knowing more than I wanted, I'm a foreigner who shares my memories. But I feel like I’ve returned to my other house, from where I have to leave even before I have time to change the strings that crackle inside my chest. In that black notebook I carry with me even more than breathing, I left between poems the sentence “Today I leave the mountain, tomorrow the wolf is waiting for me." The next morning turned me into memory. The wolf came to the mountain and saw that everything was good. Neither vanity nor passing wind (let me go). JoaoRui

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