fevereiro 25, 2011

O Balouço [Recording Sessions]

Os dias são de horas tão pequenas quando abandonamos tudo o que nos pertence. Dizem que o tempo é pertença do esquecimento se dele o prazer é seu irmão. Talvez assim seja, mas ele transforma-te quando por ele passares sem a devida vassalagem – e de pouca valia é o riso que se esquece nessa transfiguração de ti. É que o risível do teu abandono é um infeliz substituto de amor. Então, este pouco menos que nada de presente é o que nos resta antes de o entregarmos a um passado que vai ser memória e fibra do que seremos dentro de instantes. Este balouçar da carruagem do comboio que parte de Portalegre é o que eu sou, ou o que eu fui ainda há pouco; nem me recordaria dele, não fora a tinta a guardá-lo; mas nem sempre escolhemos o que é nosso para eternizar – em verdade, tão parcas são as oferendas que entregamos de boa vontade à nossa memória – e ainda mais parcas o são as que completam esta miserável manta de retalhos. E aqui sigo no balouçar desta carruagem, junto à janela por onde o dia vai substituindo o torpor nocturno. Para trás fica Portalegre e o riso do João P. Miranda e do Alexandre Nobre: os meus bravos companheiros nesta demanda; também pouco escolhemos quem elegemos para se sentar à nossa beira, à beira do abismo – mas casos os há em que esse infortúnio é inesperada fortuna. É o que me diz este nevoeiro que se ergue da erva seca do Alentejo; é o que este súbito nascer do dia me confidencia enquanto faço o possível por me afastar da entrega do coração a uma fita que o pode devolver.
Não há palavras que descrevam o momento em que te apercebes da eternidade de um acorde. Não há palavras.
João Rui

The swing- the days are of small hours when you abandon all that belongs to you. They say time is of oblivion when he has pleasure for his brother. Maybe so, but he changes you when you go through him without the due vassalage – and of little value is the laughter that you may forget in that transfiguration of yourself. It’s just that the laughable of your abandonment is an unfortunate substitute of love. So, this little less than nothing of a present is what we have left before we deliver it to a past that will be memory and fiber of what we will be in a matter of instants. This slow swing of the train carriage that leaves from Portalegre is what I am, or what I was moments ago; I wouldn’t even remember it if not for the ink, but we can’t always choose what is ours to eternalize – in truth little are the offerings that we deliver with goodwill to our memory – and even less are the one that complete this miserable patchwork quilt. And here I follow in the swing of this carriage, by the window where the day is slowly replacing the night’s torpor. Behind I leave João P. Miranda and Alexandre Nobre: my brave companions in this venture; also, little do we choose whom we elect to sit by our side, by the abyss – but sometimes that misfortune is an unexpected luck. It is what this mist that rises from the dry grass of Alentejo tells me. It’s what this sudden rise of the day confides me while I do all I can to step away from the surrender of the heart to a tape that can return it. There are no words that can describe the moment when you find of the eternity of a chord. There are no words. João Rui

fevereiro 24, 2011

Este labirinto [Recording Sessions]

Perdemos a noção das horas, dos dias e dos laços que nos unem ao que era de nós antes de aqui chegarmos. Eu vou arrancando as palavras dos cadernos onde um dia as guardei, porque delas não poderia mais ser seu albergue – e o timoneiro, ocupado nos nós desse labirinto, acompanha-as até ao silêncio delas ser menos que memória.
Regresso agora cansado ao frio deste quarto, onde dentro em breve a luz será demasiada para olhos que dela se esquecem.
João Rui

Photo: João P. Miranda
This labyrinth - We lose track of the hours and days ando f the ties that bind us to what we were before we came here. And I keep tearing the words from the books where I once I did keep them, for I could no longer be their home – and the helmsman, occupied with the knots of this labyrinth, accompanies them until their silence is less than memory. I return now to the cold of this room where in a few moments the light will be too much for the forgetfulness of these eyes. Joao Rui

fevereiro 22, 2011

5:52 [Recording Sessions]

O dia só termina quando a sombra dos acordes encontra o seu caminho através da noite. Um por um, os instrumentos vão retornando ao seu abrigo – e parte de mim também se vai arrumando nessas caixas de madeira, à espera de não voltar.
– De que têm medo estes dedos que tão bem conheciam os seus silêncios e as tuas preces?
Atiramos então o corpo cansado ao frio dos lençóis, um pouco antes do dia voltar a ser da mesma luz que trocámos por um pouco de eternidade.
E a esta hora que aqui vens sem saberes bem porquê, já só vais encontrar o estertor destas horas que se esqueceram de partir.
João Rui

Photo: João P. Miranda
5:52 - The day is only over when the shadow of the chords finds its path through the night. One by one, the instruments return to their shelter – and part of me is also finding place in those wooden boxes, waiting not to return. – what are your fingers afraid of? They who knew your fingers so well, as your prayers. We throw our tired body to the cold of the sheets, a little before the day returns to the same light which we traded for a bit of eternity. And now, at this hour when you find your way here, not really knowing why, you will only find the last breath of these hours that forgot to leave. Joao Rui

fevereiro 21, 2011

O segredo do eco [Recording Sessions]

Dentro desta sala vazia onde os microfones têm sede de passado, ouve-se tudo um pouco mais do que se devia: a respiração mal contida, o riso abafado que insiste em não deixar partir esta embarcação e o suspiro do coração por saber exactamente para onde terá de olhar para reviver a emoção que o microfone anseia. Então o mais que podemos fazer é largar o tempo ao abandono e esperar que em cada take que se vai sucedendo, o coração aguente o retorno ao seu carrasco.
Cada canção tem um segredo – e dentro dele existem outros que não sendo seus pajens, também não são seus semelhantes; certos da sua condição, acompanham o seu passo até dele serem eco.
Nesta sala vazia ouve-se tudo – um pouco mais do que se devia.
João Rui

Photo: Joao P. Miranda
The secret of the echo - Inside this empty room where the microphones are thirsty for the past, you hear everything a bit more than you should: the ill contained breathing, the muffled laughter that insists on not letting go of this vessel and the sigh of the heart for knowing exactly where it will have to look to relive the emotion the microphone yearns. So all we can do is abandon time and pray that in each successive take the heart withstands the return to its executioner. Each song has a secret - and within it there are others who, not being his lieges they are also not his peers; certain of their condition, they accompany his step until they turn into his echo. In this empty room you can hear everything - a little more than you should. João Rui

fevereiro 18, 2011

O vento de Portus Alacer [Recording Sessions]

A chuva insiste em aconchegar-nos cada passo. Ouve-se espaçadamente o rumor da sua chegada na vidraça por onde retorna a memória de outros dias. E vem um vento não sei bem de onde, que sopra por entre a relva miúda até à porta do estúdio. Talvez seja o riso de que te falam quando as tuas feições eram a promessa do estranho que hoje te devolve o olhar do espelho. Esconde-se entre as folhas deste caderno e olha-me como se fora eu daqui a uma vida inteira, com tantas promessas quebradas por entre as linhas onde ele foi certeza de infinito.
Andamos às voltas nesta casa à procura de uma certeza que daqui a um bom par de anos vai ser recordação maltratada.
Quem me dera não te esquecer.
João Rui
Photo: Alexandre Nobre
The wind of Portus Alacer - The rain insists on tucking our every step. One hears the rumor of its arrival sprinkling in the window from where the memory of other days returns. And there is a wind that blows through the small grass that comes from I don’t know where up to the door of the studio. Maybe it's the laughter of which you’ve been told of when your face was but the promise of the stranger’s eyes that look upon you from the mirror. He hides among the pages of this book and looks at me as though as if it were me a lifetime from now, with so many broken promises between the lines where he was certainty of infinity. We go around in circles in this house looking for a certainty that within a couple of years will be an abused memory. How I wish I would not forget you. João Rui

fevereiro 17, 2011

A noite ruidosa [Recording Sessions]

Os dias são constantemente pequenos para desvendar tantos segredos. E se o Sol não nos convida às janelas onde o frio encontrou morada, também a sua irmã nos recusa passagem.
Corremos então atrás de ideias que se apaixonam facilmente pelo ruído da noite: do nevoeiro que se encosta à porta da nossa solidão e que nos volta a aprisionar dentro desta sala que há-de guardar tantos ecos que sonhavam deixar de ser segredo.
Ouvimos o sussurro da voz do outro lado desde delírio que nos acompanha a noite inteira, até esta se ir diluindo nas sombras impossíveis da manhã.
Mas impossível é o sonho ser a única verdade que conheço.
João Rui

Photo: Joao P. Miranda
The noisy night - The days are constantly too small to uncover so many secrets. And if the sun does not invite us to the windows where the cold found its home, her sister also refuses us passage. So we run after ideas that fall in love too easily by the noise of the night: the fog that clings to the door of our loneliness and imprisons us again in this room that will keep so many echoes that dreamed they were no longer secrets. We hear the whispering voice from the other side of this delirium that accompanies us through night, until it gets diluted in the impossible shadows of the morning. But impossible is the dream being the only truth I know. João Rui

fevereiro 16, 2011

A coincidência do take certo [Recording Sessions]

Nada senão a coincidência influencia o registo de cada canção. Capturar o registo ou take certo é como tentar aprisionar uma ave de rara beleza que se demorou nos teus aposentos fingindo esquecimento. É necessário então abandonar por instantes a mecânica dos braços e afastar o véu que esconde a primeira emoção do momento da criação. E cada um procura a emoção que o torna de volta ao pulsar do coração que primeiro desvendou a canção – e não são assim tantas as estradas que nos devolvem essa dádiva. Os olhos desviam-se para as rugas da roupa, para as frestas da janela e a memória entrega-se ao resgate daquilo que se perdeu na velocidade das horas – e no retorno dessa escuridão, os instrumentos encontram o seu caminho até à fita se os nossos braços não se tolherem nesse regresso.
Então, é a coincidência da emoção e técnica se encontrarem por breves instantes, aquilo que se tenta aprisionar no estúdio.
João Rui

Photo: João P. Miranda
The coincidence of the correct take – Nothing but coincidence influences the recording of each song. Capturing the correct take is like trying to trap a bird of rare beauty that lingered in your room pretending oblivion. It is then necessary to briefly abandon the mechanics of the arms and lift the veil that hides the first emotion of the moment of creation. And each one of us seeks the emotion that takes us back to the first heartbeat that unveiled the song - and there are not so many roads that give us back this gift. The eyes deviate to the wrinkles of our clothing, to the frame of the windows and the memory surrenders herself to salvage what was lost in the speed of the hours - and in the return of that darkness, the instruments find their way on to the tape if our arms don’t hold them back. So it is the coincidence of emotion and technique meeting for a brief instant what we try to imprison in the studio. João Rui

fevereiro 15, 2011

O que povoa estas músicas? [Recording Sessions]

Acontece que amanhece tarde de mais e a noite não chega nem para os olás nem para os adeus. A música quer à força sair destas paredes. A batida, ora da chuva ora das baterias, conduz uma marcha muito antiga, muito mais cheia. Preencho os espaços do silêncio com os pequenos frames da paisagem: o cão que diz que é casa, a mobília que convida a habituar e os resquícios de uma era de devoção ao outro, em que abdicávamos das condutas das nossas vidas. A quem darão eles esse papel agora? Quem serão os senhores que povoam estas músicas? E o Manel, o José, o Jerónimo de que falamos, deslizam pela mata, roubando cabeças, destronando estátuas, construindo altares. Há espaços como este em que cada plataforma é uma casa, um potencial convite à verdade; venha uma lágrima, um choro, uma reza, o que seja que aqui venha quando chegar não se vai aperceber que entrou

© Sofia Silva


It turns out that the dawning comes too late and the night is nowhere enough for hellos or goodbyes. Fiercely, the music wants to leave these walls. The beat, whether from the drums or from the rain, leads an ancient march, one much busier. I fill the silent spaces with small frames the landscape: the dog who says it’s home, the furniture that invites you to inhabit and the remnants of an age of devotion to another, where we would abdicate the conduct of our lives. To whom will they hand in that role now? Who are the gentlemen who populate these songs? And Manel, José and Jerónimo of whom we speak now, they slide through the forest, stealing heads, dethroning statues, building altars. There are spaces like this where each platform is a house, a potential invitation to the truth; come a tear, a cry, a prayer, whatever it is that arrives when it gets heres will not realize it has just entered.

Sofia

fevereiro 09, 2011

Três meses de silêncio [Recording Sessions]

Prometi silêncio para me perder por entre os destroços da memória. E para onde quer que me voltasse, tudo em volta era escuridão. Mergulhei em abismos de águas tão negras e tão turvas de tão límpidas. Ali me demorei em silêncio porque o tempo não perdoa a passagem desatenta nos labirintos da memória. E jurei não regressar enquanto as palavras escritas em folhas desalinhadas não houvessem encontrado lugar na nossa embarcação.
Havia então chegado a hora de nos recolhermos à casa azul, para retornar ao coração que vimos adiando há tantas horas.
Escolhemos mais uma vez o Inverno para esta demanda – talvez seja do frio lá fora ser tão intenso, a razão de não nos apercebemos deste que nos percorre em silêncio. Aquele que vos olha de quando em vez por entre as fissuras do coração e que vos sussurra “onde te perdeste?”.
Então em verdade não estamos a regressar de três meses de silêncio profundo, mas de quase dois anos de um certo silêncio. Agora que as canções estão completas, resta-nos a alquimia de as entregar ao magnetismo da fita.
Partimos então da casa azul com todos os instrumentos que fomos guardando, rumo às encostas ainda mais frias de Portalegre onde nos esperava o João P. Miranda, o timoneiro desta ventura.
Ainda não é hora de revelar nem o nome nem o corpo deste álbum, mas daqui vos escreveremos do passar dos dias em que vamos contando estes segredos numa sala vazia.
João Rui

Three months of silence - I promised silence to lose myself in amidst the ruins of memory. And wherever I turned, everything around was darkness. I plunged into the abyss of black waters so murky of their clarity. There I stood in silence, for time does not forgive the careless wander in the labyrinths of the memory. And I swore not to return while the words written in misaligned sheets had not found place in our boat. It was time; the hour of retiring to the Blue House, to return to the long due heart. Again we chose the winter for this venture - perhaps it's intensity of the cold outside, the reason why we do not realize of this other that flows through us. The one who looks at you from time to time through the cracks of your heart and whispers "where have you lost yourself?". So in fact we're not coming back from three months of deep silence, but from almost two years of a certain silence. Now that the songs are complete, we are left with the alchemy of committing them to the magnetism of the tape. Thus we left the Blue House with all the instruments we kept, towards the colder slopes of Portalegre, where we took João P. Miranda, the helmsman of this venture waited. It is not time to reveal neither the name nor the body of this album, but here we will tell you of the days we spent telling secrets in an empty room. João Rui